quinta-feira, 29 de março de 2012

"Estalagem da cimeira Nixon-Pompidou em ruínas"










"Durante dois dias do mês de dezembro de 1971 uma estalagem localizada na mata da Serreta, em Angra do Heroísmo, nos Açores, transformou-se no centro do mundo.
Um número nunca antes visto de jornalistas estrangeiros acorreu àquele edifício com vistas únicas sobre o oceano para fazer a cobertura de um dos mais importantes acontecimentos políticos da época: a cimeira entre Richard Nixon, presidente dos Estados Unidos da América, e Georges Pompidou, presidente francês.
O anfitrião foi Marcelo Caetano, que dormia na então luxuosa Estalagem da Serreta, onde decorriam as conversações. Quarenta anos depois, o edifício, uma das jóias da arquitetura modernista portuguesa, concebido pelo arquiteto João Correia Rebelo, está abandonado e em ruína. 

Toxicodependentes na Serreta 

O abandono começou no início dos anos de 1980, quando a estalagem encerrou a sua atividade de hotelaria no âmbito da empresa TurHotel. A partir daí nunca mais lhe foi atribuída uma utilização condizente com as características do edifício e, pelo contrário, acabou cedida nos anos de 1990 à associação de reabilitação de jovens toxicodependentes "Le Patriarche".
O declínio progrediu em rota acelerada e nunca mais terminou, mesmo se a Assembleia Legislativa regional dos Açores classificou a estalagem como imóvel de "interesse público" a 1 de março de 2007.
Comenta-se depois a existência um plano de recuperação, a cargo do grupo açoriano Paim, que, nas diferentes ocasiões em que foi contactado, entendeu não dar qualquer esclarecimento ao Expresso sobre eventuais projetos para a Serreta. Na página oficial do grupo disponível na internet diz-se, no entanto, que a estalagem será reconvertida "num luxuoso Resort e Spa".

Obra-prima do modernismo


Situada na ilha Terceira e com projeto geral concebido entre 1961 e 1963 e projeto de mobiliário elaborado entre 1967 e 1969, a estalagem é vista como a obra-prima do moderno açoriano.
João Vieira Caldas, arquiteto e comissário da exposição dedicada ao trabalho do arquiteto João Correia Rebelo apresentada em 2002 nos Açores, referiu, em declarações ao Expresso, que a estalagem "é o último grande trabalho de João Correia Rebelo em Portugal e representa uma viragem na sua obra que é representativa da viragem que a arquitetura portuguesa estava a ter naquele momento".
Nascido em Ponta Delgada em 1923 e licenciado pela Escola de Belas Artes de Lisboa, João Rebelo era filho do pintor Domingos Rebelo. Começou por trabalhar na sua cidade natal, mas a defesa de princípios muito firmes levou-o a considerar que não estavam reunidas as condições para continuar a exercer a profissão de arquiteto na ilha. Regressou ao continente e em 1969 emigrou para o Canadá, onde veio a falecer.

Correia Rebelo militante do Movimento Moderno


No catálogo da exposição de 2002, elaborado pelo Instituto Açoriano de Cultura, refere-se que João Correia Rebelo, "como muitos arquitetos da sua geração, acreditava que a arquitetura e o urbanismo propostos pelo Movimento Moderno haveriam de mudar o mundo para melhor". Nesse sentido, não concebia uma arquitetura que não recorresse às possibilidades técnicas e materiais do seu tempo, "que não fosse a expressão inequívoca desses recursos, das funções a que se destinava, de um desígnio social".
Homem de convicções profundas, Rebelo distinguiu-se "pelo modo particularmente aguerrido e intransigente com que defendeu aqueles ideais e por ter tentado fazê-lo não só através dos seus projetos, mas também, caso único no Portugal dos anos 50, pela publicação de verdadeiros manifestos".
Particularmente relevantes são os manifestos "Não!", escrito em 1953, e "Senhor Ministro", de 1956, nos quais expressa com grande veemência a sua discordância quanto a algumas opções que estavam a ser tomadas no plano urbanístico, nomeadamente pela Câmara Municipal de Ponta Delgada.

Edifício está em risco

João Vieira Caldas sublinha que este homem, amigo de Nuno Teotónio Pereira, muito católico e membro do Movimento de Refundação da Arte Religiosa, "era uma mentalidade representativa de uma época, que se opõe á mentalidade de hoje, em que a arquitetura pretende ser estrela e todos os autarcas querem ter uma obra de um arquiteto de renome".
Para este arquiteto, a Estalagem da Serreta é um ponto de chegada. "É notável a qualidade com que é implantada no sítio, como se distribui pelo terreno e como a partir dela se estabelece uma relação com a paisagem exterior". 
Se não for acudida, a estalagem corre sérios riscos de sobrevivência. Fez história e recebeu grandes protagonistas da história.

Uma cimeira de europeus contra norte-americanos

A cimeira entre Nixon e Pompidou surgia na sequência das decisões do presidente norte-americano de apostar num dólar cada vez mais forte e impor restrições às importações norte-americanas. Os europeus não gostaram e a França assumiu na cimeira o papel de porta-voz desse descontentamento. Dos acordos então estabelecidos resultou uma desvalorização do dólar e o fim definitivo da sua paridade com o ouro.
Os protagonistas desta cimeira histórica não continuaram muito mais tempo no poder. Georges Pompidou morreu no dia 2 de abril de 1974, vítima de doença divulgada precisamente durante a cimeira. Marcelo Caetano, que nunca se encontrou com os dois presidentes em simultâneo, foi afastado do poder na sequência da revolução de 25 de abril de 1974. Richard Nixon resignou a 6 de agosto do mesmo ano em resultado do escândalo Watergate."

1 comentário:

Miguel Bettencourt disse...

Umas fotos que fiz no que resta da Estalagem da Serreta: http://www.facebook.com/media/set/?set=a.107373796090243.15849.100004528689089&type=3

É deprimente ver o estado ao que chegou o edifício.